domingo, 15 de abril de 2012

In Memorian



Conheci a Cinthia quando estava na segunda série do ensino infantil. Logo nos primeiros dias de aula, a nossa afinidade aflorou de uma maneira quase inexplicável. É difícil acreditar, mas eu, aos oito anos (ela com dez), acabei conhecendo o valor da amizade, algo até então difícil de entender o conceito. 

Durante anos e anos, sempre estudamos na mesma sala de aula. Professores até tentaram – em vão - nos manter afastados, fazendo a gente sentar em lados opostos da sala de aula, tudo para que tanta conversa cessasse. E, de fato, era MUITO papo. Quando não tinha aula, o programa era passar na locadora, alugar VHS e descambar pra minha casa assistir filmes. “O Casamento do Meu Melhor Amigo”, “Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado” e “Titanic” foram filmes que marcaram muito essa época.


Mais alguns anos se passaram, a adolescência chegou, e a dupla Junior e Cinthia se matinha cada vez mais unida. No colegial, mudamos para outra escola juntos, e a companhia se manteve. Não havia um lugar em que eu estivesse, e Cinthia não estava junto, e vice-versa. Nossas famílias se tornaram vizinhas. E se tratando de família, a minha se tornou a dela, e a dela se tornou a minha.

Tinha gente que apostava em um casamento. Tolos. Mal compreendiam o valor de uma amizade entre pessoas de sexo oposto. Descobrimos o seriado “Will & Grace” (quem não conhece, vale a indicação) e acompanhamos todas as temporadas com uma identificação de causar espanto. Aliás, se querem entender o nível do nosso companheirismo, Will e Grace são os exemplos mais próximos que posso dar.

Cinthia tinha duas paixões: psicologia e teatro. E seguiu com esse sonho, foi cursar Psicologia e se dedicar, como pôde, ao teatro amador. E não é porque é minha amiga não, mas eu sempre acreditei que, com o talento nato que ela representava, ela ia muito longe. Eu fiquei vagando entre projetos e desejos pessoais, até cair na Filosofia. Mesmo estudando em faculdades diferentes e trabalhando em áreas distintas,  estávamos sempre indo ao cinema em cada brecha de tempo que encontrávamos. Enquanto um comprava a pipoca, o outro ia guardando os lugares na sala do cinema


Os amigos que fazíamos acabavam se tornando amigos em comum. Um sempre falava do outro. As amigas dela me conheciam antes mesmo de serem apresentadas a mim. Comigo era a mesma coisa. Os rapazes que ela conhecia, tinham que passar pelo meu ciúme crivo. Comigo era a mesma coisa. Cada projeto, a primeira pessoa a ser perguntada, tinha que ser, é claro, o melhor amigo. E repito: Comigo era mesma coisa. 

Apesar de esses mesmos projetos terem nos afastados o mínimo que fosse (fazendo com que nos víssemos somente uma vez por semana, um disparate!), nada poderia diminuir nossas piadas internas, aquela feição que fazíamos um pro outro que já servia como um diálogo inteiro. Isso, pra ser sincero, é de um sincronismo que somente uma amizade de tantos anos poderia resultar. 

Na última semana, infelizmente, a dupla se desfalcou. Obviamente, não vou entrar em detalhes no processo doloroso que foi, porque isso desvirtuaria a idéia desse post. Qualquer homenagem que eu pudesse fazer, por mais simplória que fosse, eu produzo porque isso foi um dia conversado. 


Com 24 anos, não me sinto preparado para despedidas. Nunca gostei, e presumo que nunca estarei preparado para tal. Foi a primeira vez que passei pela dolorosa sensação de, justamente, ter que dizer adeus sem ouvir uma resposta verbal. Pela primeira vez, Cinthia me retribuiu um silêncio. 

Uma das coisas que eu aprendi com tantos filmes e séries que assistimos juntos, foi o real valor da morte. Foi em “Six Feet Under”, em sei lá qual temporada, que algum personagem, intrigado pela questão “Pra quê existe a morte?”, ele conclui respondendo algo como: “A morte existe para a vida ser valorizada. Se a morte não existisse, a vida seria um nada”. 

Então, se é pra vida ser aproveitada com o máximo de realizações, eu posso dizer que a Cinthia cumpriu a sua tarefa como sempre fez questão de ser: exemplar.

Dito tudo isso, Cinthia, espero que esteja guardando o meu lugar, como tantas vezes teve que fazer na sala do cinema. Um dia, quem sabe, voltaremos a ter a boa e velha sessão juntos.


Antes de tudo, é preciso dizer que esse post não tem nada de oportunista, até porque não estou falando de qualquer pessoa, e sim, de uma grande amiga, a quem foi minha companhia honorária em ver filmes. Muito do cinéfilo que sou hoje, e desse blog, se deve a ela. E poucos sabiam o porquê... até agora.

6 comentários:

  1. Sua escrita foi tão poderosa que estou chorando agora. Sinceramente, ficam aqui os meus sinceros sentimentos pela sua dor. Pelo pouco que descreveu, essa foi uma das personagens mais bem construídas que o roteirista da sua vida já lhe proporcionou... Obrigado por partilhar isso conosco.

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  2. Poxa,Adécio, faço das palavras do José a minha, foi lindo o qua vc escreveu. Sinto muito. Com certeza, elas está guardando um lugar especial para um belo reencontro.

    Um abraço forte.

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  3. Oi Adécio!

    Tenho acompanhado um pouco esse caso pelo Face... Eu tenho uma amizade de infância que se mantém até hoje, sabe, com força similar ao que vc disse. Não sei dizer como é essa dor que vc sente, mas imaginando vagamente se aplicando ao meu caso, é uma sensação estranha que vem.

    Achei linda a forma que vc se referiu a morte, e a perda de uma amiga. Sei que vai da crença de cada um, e o que eu acredito pouco importa, mas o fato, é que acho pouco provável que ela esteja tão longe assim qto parece, tendo crescido ao seu lado.

    Bjo

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  4. Nossa, cara, realmente foi emocionante o seu texto. Foi sim, uma bela e linda homenagem!

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  5. Fica até difícil comentar depois de um texto tão emocionante. Que bela homenagem. Sinto muito pela sua perda.

    Grande Abraço.

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  6. Estou arrepiada. É preciso ser muito valente para escrever um texto tão doloroso com evidente sobriedade. Linda homenagem!

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